// Eu tinha chamado aquilo de Fé
- Karina Copetti

- 24 de out
- 2 min de leitura
Os poderosos ventos do fim do mundo, vindos da Terra do Fogo, chegaram desarrumando o que estava em fixada ordem e igualmente pronto para perder seu lugar ideal e dar passagem ao mistério. O inverno toca com grandiosidade os limites do corpo. Vai descobrindo nos dedos as concavidades quentes. Tocando poesia úmida, com gosto escuro e bastante doce. Para sentir o calor do inverno são necessários os ossos. Porosos como as noites de lua cheia e incorruptíveis como o testemunho do silêncio das noites de lua nova. É a coruja. Voar como a coruja, pousar firme como a coruja.
Essa noite quando o sol se pôs me deitei no chão. Sonhei com o dia que acabava de acabar. Igualzinho. Algo entre sonhar acordada e acreditar no sonho. Assim que abri os olhos, um raio de luz me engoliu a retina. A visão foi tomada pela mão que me estendia um enorme buquê de Girassóis. Pétala por pétala, comi. Devorei o miolo. Lambi os dedos. Limpei a boca nos olhos do céu. Caí de indigestão. Com o estômago apertado, repetia sem parar que era mentira. Acostumada com o breu do fundo da terra, confundi. E depois me culpei por ter escrito naquela parede que na escuridão fértil uma semente está sempre a germinar. Eu tinha chamado aquilo de Fé. E achei que tê-la não faria mal algum. Mercúrio está dando ré. Arreda. Como se arredam os móveis para abrir espaço no chão. A semente rompeu. A Fé, que achei que não faria mal algum, inclusive, faria bem, brota. Vou escrever de novo para desfazer a mentira que decretei como verdade e só soube agora: brota. No sonho, ninguém contou sobre arrebentar a terra. Arejar o que estava dentro: essa é a parte que exige força. Depois, é aceitar os dentes, que contrariando Mercúrio insistem em andar para frente, para fora da boca, para fora dos lábios.
Indisfarçáveis pétalas. E um Girassol na barriga.



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