Vergonha: um sentimento universal
- Karina Copetti

- 27 de mai.
- 6 min de leitura
Atualizado: 21 de jul.
Todo ser humano nasce com uma necessidade básica: ser amada.
Quando somos expostas as relações que não oferecem segurança, respeito ou validação - relacionamentos marcados por abuso, negligência, ou dinâmicas disfuncionais, especialmente em relações íntimas - podemos passar por um processo de traumatização e a vergonha pode se consolidar como uma experiência emocional central na nossa vida.
_ Traumas de desenvolvimento e relacionamento
Quando somos crianças, ter um cuidador que nos supra é uma questão de sobrevivência. Não somos capazes, sozinhas, de nos alimentar, procurar abrigo ou regular a nossa temperatura corporal. Também não somos capazes de regular nosso sistema nervoso sozinhas, nosso cérebro ainda não está formado para isso. E, por mais que os cuidadores tenham suprido necessidades importantes, como comida, abrigo e proteção, muitas vezes não foram capazes de atender às necessidades emocionais que tínhamos. Cuidadores emocionalmente negligentes passam a mensagem de que somos invisíveis e de que nossas necessidades não importam. Através das lentes da negligência, passamos a acreditar que há algo errado conosco. E assim podemos “aprender” que, para sermos atendidas, precisamos ser úteis, nos esforçar, nos submeter. A necessidade de ser vista, acolhida, protegida e amada torna-se condicional. Nos desconectamos das nossas reais necessidades e de partes de nós mesmas, para manter o vínculo e garantir nossa sobrevivência. Assim, internalizamos a Vergonha. Nosso corpo aprende que é mais seguro se submeter do que romper. Em vez de perceber que houve uma falha no ambiente, muitas vezes concluímos: “há algo de errado comigo”. Essa conclusão é uma tentativa de manter o vínculo com os cuidadores — essencial para a sobrevivência — mesmo que à custa da própria autoimagem. Cristaliza-se a sensação persistente de inadequação e indignidade. Nesse caso, a vergonha pode se fusionar com a identidade e ser marcada por uma avaliação negativa de si: imaginar o que as outras pensam de mim — e é algo ruim. A vergonha é um ataque ao eu: “eu sou errada”, “tem alguma coisa errada comigo”.
É importante lembrarmos que todas as nossas emoções são evolutivamente eficientes e fazem parte da nossa espécie. Para a Experiência Somática, não há emoções ruins ou boas. Há emoções agradáveis, desagradáveis ou neutras. Há emoções difíceis de sentir, dolorosas, incômodas. Mas não estaríamos aqui se não fossem todas elas. A vergonha tem uma função evolutiva, ajudando a manter limites e coesão social, mas pode se tornar disfuncional e muito prejudicial quando internalizada como um traço permanente.
A vergonha identificada, esse “tem algo errado comigo”, muitas vezes nos conduz a relacionamentos disfuncionais na vida adulta. A base da codependência, por exemplo, pode ser a vergonha: uma crença profunda de que só serei amável ou aceita se me sacrificar pela outra pessoa. Então, priorizo excessivamente as necessidades dos outros, tenho dificuldade em estabelecer limites, me sinto responsável pelo bem-estar alheio e reprimo meus próprios sentimentos.
A vergonha também pode se instalar em nosso sistema nervoso através de uma dinâmica de relação abusiva já na vida adulta. Nesse tipo de relacionamento, somos frequentemente desvalorizadas, humilhadas ou invalidadas. Podemos ser constantemente culpadas ou responsabilizadas pelos comportamentos abusivos da outra pessoa. Isso leva a uma erosão gradual da autoestima e da percepção de valor próprio. Aprendemos a duvidar de nós mesmas, desconectando-nos da nossa intuição e das nossas próprias necessidades. Como no trauma de desenvolvimento, esse processo também pode criar uma experiência interna de vergonha e a crença inconsciente de que “sou fraca”, “não sou suficiente”, “não tenho valor”. A vergonha, agora, já não é simplesmente um sentimento, mas um modo de ser no mundo, que se expressa em comportamentos de retração, submissão e autoabandono.
_ Vergonha: um sentimento universal
Embora a vergonha pareça nos isolar, na verdade, ela é uma emoção universal. Todas nós a conhecemos; pode ser uma sensação de afundamento, um nó na garganta, um aperto no peito, bochechas quentes, a mente que começa a ruminar. A vergonha não define quem somos; é uma emoção — ou deveria ser — temporária. Christopher Germer me tocou profundamente ao falar da origem primordial da vergonha. Para ele, a vergonha é uma emoção inocente, não algo condenável, mas que clama por gentileza. Ela é inocente porque surge do desejo universal de ser amada. E esquecemos disso porque muitas vezes não funcionou: estendemos a mão para sermos amadas e fomos feridas. Então, nos fechamos e passamos a nos especializar em outras formas de buscar amor: sendo úteis, necessárias, fortes, inteligentes, encantadoras, amáveis… “Mas e se, ao acordarmos, colocássemos a mão no coração e disséssemos: assim como todas os seres desejam ser amados, eu também?”. Se olharmos profundamente, veremos que só sentimos vergonha porque desejamos ser amadas. Se não tivéssemos esse desejo, não nos importaríamos com o que as outras pensam e não sentiríamos vergonha. “A vergonha e o desejo de ser amada são como duas faces da mesma moeda”. E, em situações de trauma relacionais, sejam eles traumas de desenvolvimento ou relacionamentos na vida adulta, fazemos de tudo para sermos amadas.
A vergonha é então essa crença de que há algo errado comigo, que me torna indigna de amor e de aceitação, aparecendo especialmente quando sentimos que falhamos ou fomos rejeitadas, afetando profundamente nossa autoimagem. Então quem sente vergonha tende a se retrair, se esconder e ficar muito focada em si mesma, repetindo mentalmente ideias como: "eu não presto", "eu sou um fracasso". Isso pode fazer com que a pessoa pareça egoísta aos olhos dos outros. Mas esse foco excessivo em si não é sinal de egoísmo, e sim uma tentativa inconsciente de lidar com a dor da vergonha. É alguém preso em um ciclo interno de sofrimento, que precisa de acolhimento e segurança, não de julgamento.
_ Vergonha e Autocompaixão
Para Christopher, o antídoto para a vergonha é a autocompaixão. Ele define autocompaixão como “tratar-se com a mesma bondade que trataríamos um amigo querido, algo radical, já que 68% das pessoas são mais compassivas com as outras do que consigo mesmas.” É se expor como um ser humano imperfeito. Segundo Kristin Neff, a quem Christopher estudou, a autocompaixão envolve três componentes básicos: autoconsciência, humanidade comum e autobondade. E para praticar autocompaixão precisamos colocar atenção em nossas sensações e emoções de sofrimento — autoconsciência —, entender que esse sofrimento faz parte da experiência humana — humanidade comum — e ter uma atitude calorosa e gentil conosco — autobondade. O oposto da autocompaixão são justamente as características da vergonha: autocentramento, isolamento e autocrítica. Assim, autocompaixão é o oposto, E o antídoto, da vergonha. Quando experimentamos isso na prática — não só intelectualmente — conseguimos atravessar a ilusão da vergonha. E, para essa travessia — para além do intelecto — precisamos do nosso corpo.
Autoconsciência é ter um entendimento das próprias emoções, sensações, sentimentos, valores, não só intelectualmente, mas na fisicalidade do corpo. Se não, muitas vezes nos vemos nesse lugar de: “eu já entendi todos os porquês, mas não vejo nenhuma mudança” — isso pode nos dizer que o “embodiment” — a cognição corporificada — não aconteceu, e assim a experiência se mantém dividida. A mente consciente vê tudo, mas seguimos presas no passado, pois o corpo não acredita. Porque, para o corpo acreditar, ele precisa começar a se sentir seguro e reverter o processo, pouco a pouco, na ação. E, para isso, precisamos de autoconfiança. A autoconfiança é como um músculo: não acordamos de um dia para o outro e nos sentimos confiantes. É um exercício, é preciso prática e intenção. Precisamos começar a agir sem esperar perfeição. O corpo precisa começar a acreditar que é seguro confiar em si mesma e que é seguro se conectar com partes nossas que foram negligenciadas — por sobrevivência! Trabalhar com a vergonha exige criar um ambiente seguro, onde a pessoa possa ser vista com compaixão, desfazendo aos poucos a ideia de que é "intrinsecamente errada".
Desde bebês, nossa sobrevivência depende de sermos amadas e cuidadas. Esse desejo permanece ao longo da vida, mesmo que muitas vezes o escondamos ou esqueçamos, porque já fomos feridas tentando ser aceitas. Se nos lembrarmos desse desejo — em nós e nos outros —, podemos nos conectar com mais empatia e humanidade, especialmente nos momentos em que isso parece mais difícil: quando sentimos vergonha. A vergonha parece culpa pessoal, mas é uma emoção inocente que merece ser acolhida.
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